segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sozinho

Outras figuras sem forma -espalhadas num esboço à café sobre o pano de mesa que cobria o lanche matutino- vestem minha curiosidade pueril. Quando eu me livrar desse pão até as migalhas, prometo que te levo ao Riacho para dar comida aos peixes, e isso lhe servirá de morfina junto ao mato denso roçando na tua canela. Mas sei que suará bastante quando lembrar de tudo, o efeito consumará no fim da manhã e precisarei transmigrá-lo com êxito para outro ambiente mais feliz que o Riacho. E acho que não há maior felicidade, ainda que no Sol ardente do meio-dia atordoe minha nuca nua até acinzentá-la de ressequida, pois aquela água barrenta traz à tona um passado tão recente e tão vivo, um passado que é passado por falta de oportunidade. Aos caiaques e pedalinhos.

Eu acho que te levarei para um passeio à pedalinho, e juro que só eu vou pedalar. Te deixarei livre para deslizar a mão na água o quanto quiser, ou jogá-la em mim, para um refresco momentâneo. Espero que isso resolva em algo. E se não resolver, quando a Lua chegar sairemos para uma pernada juntos, podemos ir até a quadra e chutar a bola na parede, esperando que ela volte pra não termos de buscá-la. Ou podemos deitar na beliche e observar o teto, desenrolando num diálogo, toda nódoa causada por algum motivo. E se numa outra ocasião precisar de mim, talvez não mais serei capaz de te ajudar. Ainda mas que meu braço arde de queimado por ficar de camiseta fora da sombra.

As vezes é bom falar, ainda mais se for consigo.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Cachoeira

Fiquei estático até meu pés se moldarem com as pedras pontiagudas onde ocorre a queda da cachoeira. As águas desabam numa voraz sinfonia, misturada a orquestra das aves e ao som aveludado das lufadas nas árvores. Passeei por sobre o lodo esbranquiçado com as vozes desnutridas cantando cuidado.

- Cuidado. Se cair nas pedras a essa altura vai se machucar muito. - como se se importassem com a minha dor ou morte. Se preocupam com a cena horrenda do meu corpo entreaberto que traumatizará seus filhos meigos com o sangue respingado no mato. A grande verdade é que as pessoas são uma moeda dúplice que apresenta os dois lados iguais, e a probabilidade de ser bom é a mesma de quando a lança e espera que caia de lado.

Garnel não existe de fato, mais habita em mim como uma bondade isolada. Uma bondade que não existe em ninguém e é melhor por não existir.
Se banhar na cachoeira de água cristalina, enquanto a água te isola da única realidade ser vivo.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Porém real

Hoje Garnel tombará na noite, como um falcão rompendo as gotículas das nuvens.

O coração bate contra o muro de recordações indeléveis que os anos o propuseram, os anos não muito distantes, e Garnel bebe para distrair o inesquecível. Desce a escada deslizando a ponta dos dedos sobre o corre-mão mofado e cambaleia até a primeira cadeira à vista. Ponderando a desgraça lida no ônibus de volta pra casa, a descoberta insana de um antigo amor. Lia de mãos trêmulas, suando álgido na testa e galopando os buracos da rua. Garnel vê sua cama vazia e se pega tombando de bêbado, debruça-se sobre a cômoda de madeira, meio acinzentada de tão velha, e espargi todos os fluidos de teu corpo forte.

Na manhã seguinte, o Sol nas costas produzindo uma sombra triplicada no vasto quintal, mastiga o pão que comprara a mais na manhã passada, pois esperava um amigo que não compareceu, mais um motivo evidente para decepção que sofre. São cem dias, completos hoje, que Garnel desemboca todos os seus caminhos em becos escuros escondendo-se da realidade da vida.

Garnel vê transmigrar em sua frente todo o escol que um dia teve. No início de uma noite quente de outono repete todas as doses que tomara ontem, que já foram repetidas anteontem. Se vê preso numa cadeia infame que tenta ressuscitar antes que a noite caia sobre ele.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Alguém chamado Lua

A suntuosidade da Lua desponta, para Garnel, em cada poente, quando o prateado do clarão do luar se disfarça no Sol fugindo e deixando suas pegadas tingidas de laranja. A Lua o atrai só por existir, mesmo nas manhãs em que se perde do outro lado do mundo e o abandona na medonha luminosidade do Sol. Por tanto admira-la, gastava dias vendo aquele indo e vindo, como as ondas nos pés das pedras que envolvem as praias.

Garnel valorizava cada feixe de luz que a Lua espargia durante toda a noite, idealizava a matéria prima de sua circunferência, como idealizo tua voz. Creio que Garnel via na Lua não mais do que quando te vejo. Garnel via das nuvens, seus olhos refletindo do cume das montanhas o pouco do Sol que resta mesmo no escuro. A substância da Lua encherá minha boca de amor, e os astros amam-se enquanto tens a Lua aprisionada, enquanto és a Lua aprisionada.

Hoje Garnel não só a ama, a tem enlaçada numa paixão explosiva, a ama como o fogo ama o álcool. Dorme submerso numa noite mais cinza que a outra sem motivo para abrir os olhos pela manhã. Sabe que ao acordar não haverá compania melhor do que quando dorme.

Aquela fantasia dos dois amantes que se embriagam fronte ao clarão do luar seria embriagar-me só fronte ao teu rosto. E ainda que me cale numa sombria revolta, ainda que o verão atrase a chegada da Lua, ainda que vacilem os amantes, morrerei mesmo impassível, pois não há impassível enquanto és minha.

De pouco em pouco, bebendo a doçura de tua seiva.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Desordem

As coisas quando vistas de ponta cabeça perdem a forma, nunca o sentido, só a forma. Descobri num sofá enquanto observava a sala sem dinâmica, a televisão distorcida e os quadros tendo de ser reformados pela mente. Mais o que me confirmou de fato fora a face de queixo pra cima, que me envolvia como se numa caverna bem quente e pouco arejada que eu dormia por querer e não necessidade. A decisão do conforto quase nunca é por completo favorável, tive que reformular o retrato dos olhos brilhando no escuro vendo TV, reformular os cabelos, que agora tampavam a minha visão, reformular as idéias no pescoço. Todas as informações, só que viradas de cabeça para baixo. Fitar um queixo quando apoio a nuca ao invés de fitar o rosto quando apoio na parede.

- Você fica diferente por essa perspectiva, sabia? - e só murmura, como quem não entende e confirma mesmo assim.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Irmão da vítima

Eustácio acreditava de alma cálida na ressurreição da irmã, pois morrera soterrada por duas avalanches de barro e barracos horas atrás. Cria que quando as escavadeiras encerrassem o ofício, os bombeiros carregariam-na numa maca empoeirada de escombros ainda que com a vida bem escassa, e algumas câmeras ao-vivo entrevistariam o alívio do irmão. Já era tarde para o homem e foi cedo para a jovem asfixiada deixar o mundo. Dentro daqueles olhos tencionava um vermelho de choro em cada quilo de terra que as pás retiravam, tanto a dos civis quando a dos bombeiros que trabalham como se cada corpo morto ou quase morto que estivesse soterrado fosse um parente muito próximo.

Essa manhã o Sol jaziu às lágrimas que a terra absorve na eternidade da perda e irriga as flores arrastadas pela força da água. Abriu-se o ventre das águas, nas águas que vertem de dor.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Mão de onze

Meu parceiro me abandona por alguns minutos para uma rodada de truco, enquanto o reggae definha no ar com as trações de paz que só o próprio possui. Vejo os lustres como pirulitos luminosos enroscados naquelas máquinas de docerias e a praça como um campo de guerra entre os moradores locais e as drogas. Os jovens, que são muitos, cancelam seus compromissos por uma rodada a mais, e o truco assim como cada concreto que constrói o local é um subterfúgio em relação ao tempo, para deixarem suas casas nunca felizes, seus lares de pouco amor e suas mães grávidas desde o infanto de suas vidas.

A praça me traz uma paz inefável e uma compreensão que talvez fora dela não haja, como se houvesse uma dimensão nova dentre os coqueiros à volta que convença a todos do que quiser convencer.

A capacidade de convencer precede a do homem de resistir, e por isso me canso de ver olhos vermelhos, palmas da mão de cheiro e cor amadeirados e as mentiras estampadas sobre os bancos lascados, no céu ao luar e principalmente, dentro de cada buraco usado como desvão.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Coelho

Apoiei-me ao limiar da porta e ouvi bem transitado tudo que diziam, se diziam ou se só acusavam. Fico labutando pela primeira vez num esboço mental, as sub-raças do que é ser infiel. Se ser infiel é trair ao outro e não a si, então sou um escarro quando me engano e traio minhas próprias verdades.

Permiti desafirmar inopinadamente a corrente que guardava o documento tão vivo daquelas curvas, que por pouco tempo foram em voraz percorridas pelo choque de mãos contrapostas a pele, entre o doce alaranjado misturado ao álcool que agora exala nos hálitos. Potencial tem, o suficiente para procriar uma cidade da espécie e com qualquer que seja.

Mais uma dose de olhos escuros em contraste com a pele.

sábado, 3 de abril de 2010

Aplaudi, Gargalhei.

O ruído das gotas nessa manhã mais que álgida era um sufoco de se ouvir. E a contragosto, não posso tomar nada gelado e nem expor-me ao frio. Pondero uma forma de me distrair e não chego a lugar algum. Já na porta da minha memória, uma lembrança pesada:

Pára na porta da entrada dos banheiros e segue com o olhar a correria, na verdade segue o percurso lúcido de alguns passos que dei em direção ao subsolo. Os carros todos esperavam seus donos lealmente e os pilares demarcavam as zonas de espaço. Enquanto, afoito, perseguia alguém que nem sabia quem de fato. Quando voltei, vi os mesmo olhos que me seguiam no passado próximo de 15 minutos antes, me seguirem já não mais da mesma forma. De longe avistei, sobre alguns bancos de quatro pernas altas de madeira, seis ou mais pessoas que rodeavam uma mesa redonda de marca de cerveja. Quando me aproximei pouco mais, dois copos que havia visto a pouco cheios, estão vazios como se estivessem novos e lacrados.

Sua fala engraçada te denunciava, mesmo contradizendo tudo. Teu andar embriagado ainda assim era doce, e percebi que sem resistir, embarafustou-se no mesmo caminho que todos, e era mais uma comum entre nós. E entre elas era a mais brilhante, pois teus olhos se tornavam em direção a luz do poste baixo que brilhava sobre a tua cabeça -primeira cena em que te vi alucinada-

Resumiu-se a noite em poucas coisas ditas sobre um banco verde, de frente para o estacionamento e ao lado de uma fonte. Ao som trivial de um violão e voz e ao gosto nada trivial do teu pescoço.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Recomeço

A garçonete decantava cuidadosamente sem deixar rastros no corpo dos copos comumentes.

Falávamos sobre o cão que dorme sob o banco da praça ao lado de um negro temulento e fétido, sentados em círculo como quem brinca com espíritos. Senti a suposta dose descer num rasgo ardente, quando balbuciava pedindo mais um copo. A repetição era pura elegância e os risos cobriam a tontura. Até que alguém decai sobre a mesa clamando em silêncio, e de tanto silêncio não lembrei de mais nada.
O escuro era pura intuição.