sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Labirinto

Atravesso a rua e me escoro num poste, ainda daqueles de madeira que a prefeitura tirou anos atrás. A luz é mínima e tento decifrar o ruído hermético que me lembra algo da infância -Ultimamente tenho visto a infância em quadros, sendo por mim mesmo restaurados, um nada raros- Bordejo até a porta mais próxima.

Me peguei te vendo em forma de espectro. Gritei e não fui visto, te toquei e sequer sentiu...
"A verdade me vem quando estou só".

Hoje eu acordei sentindo a boca seca, a bexiga cheia, as pálpebras pesadas e musicando meu esquecimento. Musiquei os beijos que não dei, cantarolei o uísque que agora me pesa, decifrei a cidade pelo asfalto.

Quando você ouve algo e tenta musicar
Quando a música te lembra algo. Ou
quando todas as coisas se resumem ao silêncio:
Aí serei um tanto quanto estonteante
E lhe direi as verdades
Que não são.

-Garnel

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Dispor

Enquanto você dorme eu me disponho a pervagar pelas estrelas dos seus sonhos. Eu me disponho a moldurar em ti a paisagem em que sonha, para vive-la ainda nos instantes em que te perco. Enquanto você dorme carrego a cruz de te ver morta, mesmo que essa morte seja uma ciência simples e conhecida.

Seu sono é a mitologia que suporta minha fraqueza humana, é poético e luxuoso como qualquer poente.

Seu sono é um requerimento de imortalidade, enquanto eu me disponho a esperar que finde o sonho até que seus olhos se abram e eu te chame enfim, de amor.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

À minha menina


"As meninas são minhas
Só minhas
As minhas meninas
Do meu coração"

Cecília pode ser qualquer mulher. Pode ser Luíza, Beatriz, Clarisse ou Maria, qualquer nome que me agrade. Cecília pode ser amante ou namorada, pode ser ébria ou realista, pode ser doente ou saudável. Cecília é Cecília. Ela me liberta o corpo aos gemidos do vento e sinto-lhe a voz murmurar "Você, Você!" Como quem quer atenção.

Cecília é linda e tem o nome de minha filha. Cecília é minha, minha filha ainda não nascida. Tem cheiro de flor e a cara de minha mulher, o corpinho miúdo, um laço charmoso e enternecedor que lhe prende os poucos fios de cabelo. Cecília lembra minha mãe que me remete a infância que me faz lembrar da ovelha colorida que tirei tantas fotos um dia.
Foi bem recebida por mim -por ninguém mais conhecê-la, ainda- Pode também ter outro nome, algum que indique o significado da minha tatuagem no pulso esquerdo que pulsa como um segundo coração.

Cecília abrange um universo de características, uma poesia nos olhos, umas garafunhas nos dedos,
a mãe no sorriso.
Cecília sou eu.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Tremo(r)


Já formulei tantas hipóteses que se somadas formam um rio
Fugindo com sua própria correnteza, sobre suas próprias águas
Sobre suas vidas e cardumes, sobre tuas mágoas.
A hipótese de ser doce, mentiroso ou morrer como um bandido.
Dando ênfase ao que mais revela, a bandeira, talvez
Ao símbolo ou ao seio das coisas que eu acho
Dando ênfase ao fato de serem apenas hipóteses.

Tenho rugas de criar, desfazer, recriar as coisas que penso
Porque pensar é como um anzol sem isca, como querer tocar o céu,
Roubar uma estrela, a Lua, como ser invisível ao homem
Como desaguar numa carícia sem recompensas.

Criar hipóteses é a morte tão enfunada de ironia
que a reza desaparece com nome de flor, tarde da noite.

E enxergo a razão...


segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Carona


Do outro lado, atravessando o campo, o deserto, os mares, a cidade e subindo aos céus, perfurando a atmosfera e seguindo o infinito negro da essência do universo, eu vi o núcleo da existência.
Quando abri os olhos para um sonho e fechei ao mundo:

Era rústico e cheirava a lilás, vinha em lufadas esse cheiro e era tão verde e cinza pelo clima, que as cores nas árvores se misturavam. Um espaço talvez de poucas centenas de metros. Era inverno, tão inverno e ainda assim verde, tão verde que o ar era verde quando se revolviam as cores. Eu ouvi cantar uns pássaros que jamais havia ouvido, com um parco resultado de orquestra.

Quando tinha apenas encostado a minha face
na tua face.
Te sonhando nos meus sonhos em que a natureza
É desconexa como um sono que se dorme
Incoerentemente na volta tardia para casa.




quarta-feira, 13 de outubro de 2010

De ser amada

"Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar."


Parece que você sempre houve, que te conheço de outras carnavais e que sua voz era semelhante a alguma conhecida, vindo das cordas de uma outra garganta desentoada e única. Como as cordoalhas dos navios que se misturam com os sons das botiques a beira-mar.

Nos filmes, as ficções parecem mais deselegantes, submersas naqueles fatos surreais. Você me pareceu um tanto quanto surreal. Seu riso, autor de sua gramática e de sua luz aparece nos píncaros do desejo, como o verdadeiro verão ao pico das montanhas enevoadas.

Mas eu tive à sombra inefável do oculto, e tanto quis gritar ao mundo e ao firmamento, para que fosse totalmente possível essa ligação. E nessas entrelinhas, a verdade finaliza com um sincero e tão conhecido querer.

Só te conhecia por nome até sentir-lhe a chama da Lua.

-Garnel, num devaneio enternecedor.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Cais


Sabe, não há chuva nem mistérios, não há árvores ou sequer um pingo da natureza
Não há pois não acredito no mundo, e não há.
Acredito nas coisas que por si só se guardam no silêncio da tarde, mas não acredito na tarde
Porque a tarde tem chuva, tem Sol, e também não creio no Sol.
Creio no cheiro da chuva, e creio desconfiado, a natureza trai e por isso não creio nela
Nem em seus pequenos detalhes, nem nas coisas bonitas, nem nas coisas feias.
Também não creio na beleza, porque quem é belo mente ao mundo e é um a mais.
Quer queira ou não, a natureza apesar de não existir, é toda bela.

Na mente, algumas imagens bifurcam o pensamento e atrasam a vida
Por isso creio no neutro das coisas, nas cores neutras, nos olhares neutros
Creio no clima neutro e em tudo que é neutro, mesmo não crendo na natureza,
Apesar de conviver com sua existência.

Só não creio mais na humanidade, pelo fato de um dia,
Com todas as forças e verdades,
Ter crido.


"Silêncio, ando obcecado por silêncio. Um silêncio que te permita ouvir o ruído do vento.
E o bater do coração"

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Epifania


Hei de voar pelo ermo,
enojado e filho do vento.
Indo a casa de meu pai
ditoso amante do mundo
a quem refresca as horas.

A ilha foi vista entre o mar e o mar.
Indiferente, onde estava o vento.
Ameaçando a artesã, um sonho desconexo,
arredio e singular.

Vejo você propagando a aurora boreal como se fosse simples o conceito de ser rosa, cor de rosa, flor-de-rosa, noite rosa. De trás da noite sem sombra sobre a colina da ilha que na noite se enche de luzes e as pétalas são levadas pelo vento.

Assim, o exagero muda as formas e põe tudo a perder. O nada se torna um. O vento se torna cinza. A duplicidade se torna involuntária.